quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Capitulo 18


«Tu não escolhes de quem vais gostar, de quem vai ser teu amigo ou para quem vais entregar o teu coração e seu amor. Mesmo que a pessoa não mereça, tu não escolhes. Não é como panfleto de rua que tu entregas para qualquer um, mas também não é algo que tu apontas o dedo e digas “és tu e pronto”. As coisas não são assim e estão longe de o ser.»

A noite fazia-se fria. O ponteiro do relógio fazia tic-tac enquanto que o tempo passava incessantemente. Nada faria prever aquela noite, nem mesmo as Deusas, os olimpos, os Reis ou qualquer feitiçaria possível e imaginável. Tal como sabiamente se diz, “não se escolhe” nem tão pouco “se adivinha”. Mas talvez uma única coisa pode-se prever. A sabedoria. Porquê? Simples. Todo o mundo que encontramos na vida estará a enfrentar uma batalha que não conseguimos ver. Há algo que não sabemos a esse respeito e para tal é preciso sabedoria para com essas pessoas. Sempre. Apenas para o caso de no final de tudo, não trazer surpresas tal como neste caso.

- bem…eu vou-me embora que esta noite já foi longe demais… - depois de um silencio longo, Isabel ganhara coragem para se levantar do passeio ainda sem dirigir um único olhar a Javi. 

- vale. – aqueles olharem por momentos se haviam cruzado. Javi era capaz de manter-se como se momentos daqueles fizessem já parte da sua rotina mas para Isabel aquilo não passava de um incomodo. Será que ele iria contar a todo mundo que ela passara o Natal sozinha? Aquilo era tão impensável que sentia todo o seu estômago às voltas. Simplesmente…era horrível e desejava nunca mais se lembrar daquela noite. Mas…será? Será que a melhor solução passaria pelo esquecimento de algo invulgar e diferente? O telemóvel de Javi tocou. Algo a fez despertar daquele transe e ficou a observa-lo a tira-lo do bolso.

- sí? – Isabel poderia distinguir uns certos ruídos provenientes do outro lado da linha. Algo que fez com que Javi ficasse com uma expressão brutalmente dura. – qué? Qué dices? – num ápice, Javi levantara-se deixando Isabel com o ouvido bem atento para tentar perceber o que se passava. – como? Quando? E… - Alguém o tentava interromper. Parecia ser voz de uma mulher – não é possível! – gritava em surdina já exasperado. – eu vou já para aí! – com brusquidão, Javi desliga a chamada e naquele instante parecia um pouco perdido. 

- Estás bem? – perguntara Isabel com relutância.

- a minha irmã desapareceu… - Aquilo parecia mais uma espécie de desabafo do que propriamente uma resposta à pergunta dela. Mesmo assim, não deixara de se arrepiar ao ouvi-lo. 

- Dios… - sussurrou Isabel.

Ainda atarantado, Javi começa a andar de um lado para o outro. Estava visivelmente nervoso mas havia algo no seu rosto que era totalmente desconhecido, pelo menos para ela. O medo. Havia medo nas suas feições, como se pela primeira vez as coisas estivessem fora do seu controlo. Como se não pudesse fazer nada para resolver. Ganhando alento, Javi começa a caminhar até junto da sua mota, subindo para cima desta. Era bem notável o quanto estava fora de si.

- Hei, espera! – gritou Isabel – eu levo-te, nem penses que vais de mota! – depressa se juntou a ele quase como impedi-lo de sair dali. Como se, naquele instante, andar de mota, representasse o meu maior perigo. 

- sai da minha frente Isabel!

- não! tu és louco? Nem penses que vais na mota muito menos nesse estado!

- já disse para me saíres da frente! – gritou-lhe.

- e eu já disse que não! 

- sai!!

- Não! – berrou – queres também tu desaparecer é? É que nesse estado é o provável que te aconteça!

- não me interessa o que me vai acontecer, quero simplesmente que saias da minha frente! E juro que se não o fizeres eu passo-te por cima!

- então passa! – ripostou – queres passar? Passa! – aproveitando um lapso de distracção, Isabel tira as chaves da mota. – Eu já disse que te dava boleia… - de um jeito mais calmo, Isabel estava determinada deixando-o sem outro opção.

~


Bruscamente, Javi entra pela porta da sua antiga casa, pouco se importando com o resto. Deparou-se de imediato com a sua mãe sentada junto ao sofá juntamente com um grupo de homens.

- onde está a Melissa? – disparou. Roberta, levantara-se mostrando o quanto estava visivelmente abalada e perturbada.

- oh Javi…nós não sabemos dela… 

- e porque só soube agora, porquê? – gritou exasperado – tava à espera que algo de pior acontecesse para me contar?

- calma filho…nós pensávamos que ela tinha fugido para a casa de uma das suas amigas como costuma fazer ultimamente…esperamos mas ninguém sabe dela – Roberta começou aos soluços – e nem tão pouco parou em casa de nenhuma das suas amigas…

- como é possível que isso tenha acontecido? – acusou num murmuro 

- não sei! Não sei…a policia está a fazer os possíveis para que possamos encontra-la! 

- ah Joder! – exasperou virando costas. Disparado, Javi sobe as escadas num lanço parando no quarto da sua irmã. Ela não poderia simplesmente desaparecer pois Melissa não era assim. Sempre fora mais responsável do que ele mesmo, era uma rapariga calma, meiga…não ia fugir assim, do nada. Ficou a olhar para todos os cantos quase como à procura de algo que lhe desse uma pista de onde ela estava. Uma carta? Uma fotografia? Peça de roupa? Abriu o armário e a roupa estava intacta. Basculhou e nada…nada fazia prever onde estava a sua irmã. O tempo ia passando e os nervos acumulavam de tal forma em si deixando-o tenso. Acabou mesmo por se sentar na cama. Javi não podia perder a sua irmã, a sua pequenita. Começou a sentir remorsos do pouco tempo que lhe dedicava, a escassa atenção que um irmão mais velho deveria proporcionar-lhe e mesmo a protecção que deveria estar inabalável. Ele tinha falhado, tinha de admitir isso mesmo que lhe custasse. 



Isabel ficara petrificada à porta daquela casa sem saber se entrava ou ia embora. Reparou no carro da polícia que estava à porta e pensou que estariam todos concentrados em encontrar o paradeiro de Melissa. Voltou a pensar nos últimos minutos que vivera. Aquela noite estava a ser terrivelmente inesperada para si e nada faria prever um desfecho daqueles. Voltou a reparar na fachada da casa e percebeu que era grande. Jardim bem arranjado, as luzes que ofuscavam as paredes, os carros de bom porte juntamente com as camaras de vigilância que a casa tinha. Javi era rico? Será? Uma coisa que contrastava com ele. Nada faria prever que fosse uma pessoa com bons portes mas para ter a polícia particular em sua casa, era a prova disso. 
Decidida a não pensar nesses pormenores, resolvera entrar. Não estava ninguém naquela sala ampla mas conseguia distinguir vozes que provinham de uma outra divisão da casa. Ficou a mirar ao seu redor e encontrou uma fotografia de uma rapariga nova. Pela aparência, pelo sorriso ou mesmo através dos olhos parecidos com Javi, conseguiu decifrar que seria Melissa. 

- o que deseja? – uma voz fê-la sobressaltar. Olhou na sua frente deparando-se com uma senhora que deveria ter os seus sessenta anos. 

- ah…eu…eu dei boleia ao Javi e…queria saber como ele estava! – respondeu de um jeito um tão pouco atrapalhado.

- hum, estou a ver… - aquela senhora olhava-a de um jeito intrigante. Parecia estar a observa-la com maior detalhe – disse que lhe deu boleia foi?

- sim…ele queria vir de mota mas achei que não estava nas melhores condições de conduzir. – um sorriso surgiu no rosto daquela senhora.

- é namorada dele? – perguntou 

- ah, não! – apressou-se Isabel a corrigi-la – eu sou apenas…conhecida.

- quer qualquer coisa para tomar? 

- agradeço mas não preciso… - agradeceu amavelmente – eu só queria saber como estavam um pouco as coisas e também já tenho de ir embora!

- oh…está tudo numa lastima! Ninguém sabe por onde anda a menina Melissa. Desapareceu desde a hora do almoço e ainda não apareceu. Só espero que nada de mal lhe aconteça!

- e não há de acontecer! Temos de ter esperanças e que a policia saiba fazer o seu trabalho!

- pois é…ter esperança. É o que nos resta… - um certo silencio , um pouco desconfortável, havia surgido – como é que se chama?

- eu? Ah…Isabel!

- Isabel, se quiseres o Javi está lá em cima, podes ir ter com ele.

- eu tenho que ir embora. Também este momento é de família e não quero estar a intrometer…o Javi provavelmente que quer estar sozinho!

- oh não precisas de ter vergonha! Estamos todos num momento difícil mas também precisamos de um pouco de carinho. E quanto mais o meu neto Javi…vá, podes subir! É o primeiro quarto em frente. – Aquela senhora tinha um modo tão simpático que Isabel ficara a mira-la um pouco. Fazia-a lembrar de alguma maneira, a sua avó. No fundo todas elas eram parecidas em especial na forma como gostavam de tratar dos netos. Incentivada pelo gesto dela, Isabel subiu ainda que fosse de um jeito acanhado. Estava numa casa estranha e num ambiente sufocador. Assim que se deparou com a primeira porta, reparou que estava entreaberta e decidira espreitar. Era o quarto de Melissa e prova disso era a decoração tipicamente de adolescente. Mas não fora a decoração que fez cativar toda a sua atenção mas sim algo que a deixou sem reacção. Sorrateiramente, entrou dentro do quarto e aproximou-se do cadeirão, onde Javi estava deitado e a dormir. Tinha preso debaixo do seu braço um peluche grande e Isabel ficou a mira-lo atentamente. Aquele momento estava a ser estranho e aniquilante pois jamais esperaria vê-lo numa situação daquelas. Mas afinal…quem era ele? quem era aquele rapaz que não suportava mas que conseguia surpreende-la com atitudes imagináveis? Quem era afinal Javi? 


~


Isabel não conseguia dormir. Voltas e voltas na cama e nenhuma suficiente para fazer sossegar o seu coração. Naquele momento sentia-se perdida a olhar para o tecto. Aquela casa vazia deixava-a inquieta e a pensar em tudo e mais alguma coisa. Pensava na discussão que tivera com a sua avó, no facto de passar a consoada na rua, de ter encontrado Javi e de partilhar a noite com ele, o desaparecimento da sua irmã…tudo aquilo era mais do que suficiente para a deixar inquieta. Tentava pensar que tudo iria ficar bem mas assim que fechava os olhos, era invadida por lembranças tenebrosas. As discussões…tudo. Acabou por suspirar e, sem pensar bem, levantou-se. Pegou no telemóvel e reparou que passava um pouco das três da manhã. Ainda perdeu um pouco de tempo a olhar apenas para o ecrã mas quando deu por si, já a chamada se fazia ouvir. Tocou e tocou mas parou no atendedor de chamadas. 

Hola Javi…desculpa estar a ligar a estas horas mas gostava de saber como estão as coisas e se a tua irmã já apareceu…bem…era apenas isso. Adíos.

E assim desligou o telefone acabando por se deitar na cama. Aquela noite parecia não ter mesmo um fim e no seu pensamento, só desejava puder esquecer tudo o que acontecera.



~


Javi permanecia no jardim apesar do frio que se fazia sentir. Sentia a cabeça à roda com aqueles acontecimentos todos, o facto de ter a irmã desaparecida, o ambiente estranho que se fazia sentir naquela casa e a própria relação entre si e o seu pai que se mantinha a mesma. Afastados e sem se falarem. No fundo acabava por ser um estranho numa casa que já foi sua. Num lar que o vira crescer. E, à medida que o tempo passava, mais sentia que não pertencia àquele lugar.
Mas naquele momento o mais importante não passava por isso mas sim por encontrar a sua irmã. Por onde ela andava? Será que a tinham raptado? Ou simplesmente saíra de casa? Sentiu um calafrio só de pensar na possibilidade de algo de mal lhe acontecer. Não a ela…não à sua pequenina. Acabou por encostar a cabeça à cadeira quando ouviu um alvoroço vindo de casa. Precipitou o seu olhar até lá e fora os gritos de sua mãe que o fez saltar e correr. Mal chegara à sala deparou-se com toda a gente de volta da sua irmã. Um enorme alivio trespassou-lhe e naquele instante só a queria abraçar…finalmente ali estava sã e salva para grande alivio e tranquilidade de Javi.



~


- Mas eu já disse que foi isso que aconteceu!

- pois mas eu não acredito. Os pais até podem ter acreditado mas duvido que te tenhas perdido…eu conheço bem aquela zona e apesar de ser perigosa tens bem como chegar a casa cedo. – um silencio imperou naquele quarto. Apenas restavam Javi e Melissa que permaneciam sentados sobre a cama. Enquanto ele a olhava piedosamente, ela apenas desviava o olhar, olhando para o chão.

- tu vais gozar comigo se eu contar…

- porque haveria de gozar contigo?

- porque toda a gente o faz! – respondeu de uma forma de como aquilo fosse o normal e esperado.

- pois mas eu não sou toda a gente. Eu sou o teu irmão!

- tens a certeza…prometes que não gozas nem resmungas comigo?

- tenho! Então…o que se passa?

- na minha turma…as raparigas gostam todas de se mostrar. São giras, populares, enfim…toda a gente gosta de ser como elas. Ali ninguém anda ou gasta de se misturar com pessoas como eu. O que é que sou ali? Passo bem despercebida e não sou popular. Então…comecei a andar sozinha a maior parte do tempo. Almoçava, lanchava…tudo sozinha. Só que há uns tempos para cá juntei-me a elas só que para me aceitarem no seu grupo eu tinha de ser como elas. Tentei mudar os penteados, as roupas, os cadernos…comecei a ser amiga delas. Tínhamos combinado que no dia de hoje iriamos para o parque junto ao rio e todas nós tínhamos de saltar para a agua. Eu não queria porque não sabia nadar mas se eu dissesse isso iria ser gozada! Elas foram saltando e…eu fiquei para o fim. Todas gritavam para saltar só que estava com medo. Quando começaram a chamar-me de medricas é que fiquei com vergonha e saltei! Comecei a atrapalhar-me e nem sei como consegui segurar-me junto ao tronco do passadiço. Estava cheia de frio e depois acabei por trocar de roupa…Bem, depois, no final, elas foram embora de carro e como não havia lugar para mim deixaram-me sozinha. – Dito isto, Javi sentiu a sua irmã a desatar num choro inquebrável fazendo-o sentir-se como se estivesse a levar um murro. Apressou-se a abraça-la confortando-a.

- Hei muñeca, já passou! – Melissa acabou por se atirar completamente no seu colo deixando ser confortada por aqueles braços quentes e seguros.

- Desculpa Javi…

- Então? Não tens nada de pedir desculpas! Tu não tens culpa que elas sejam anormais e te tenham magoado. – Apesar da suavidade com a qual falava para a sua irmã, Javi sentia uma enorme cólera a crescer dentro de si, ao tentar imaginar o que aquelas miúdas tinham feito a ela.

- prometes que não contas nada aos pais? Por favor eu não quero que eles saibam! – Javi olhou-a e por mais vontade que sentisse em fazer justiça pelo que estava a acontecer a Melissa, sabia que tinha de guardar para si, ainda para mais observando a cara de pânico dela. E, verdade seja dita, não conseguia idealizar os seus pais a resolver aquela situação acabando com ele de vez.

- não te preocupes…eu não conto nada aos pais.

- prometes? – sussurrou com as lagrimas a escorregarem pelo seu rosto delicado.

- prometo.

- obrigada… - Melissa abraça-o.

- Mas Melissa, eu vou pedir-te uma coisa. Tu tens que te afastar dessas miúdas! Elas fazem-te mal e além disso tu não és como elas, nem de longe. Não voltes a dizer que és uma rapariga vulgar porque és melhor que elas todas, és linda e uma miúda maravilhosa. Não deixes que ninguém te calque, ouviste? Ninguém é superior a ti, ninguém!

- eu só queria ter os meus amigos, percebes? Eu não gosto daquela escola, não gosto da minha turma! preferia muito mais o liceu, eles não me julgavam e eram todos fixes. Eu simplesmente odeio estar lá!

- porque não falaste sobre isso?

- e o que adiantava? O pai mal pára em casa e a mãe julga que consegue fazer as coisas à maneira dela. Aqui ninguém se interessa por aquilo que eu penso…

- eu interesso-me. Tanto me interessa como me preocupo demasiado contigo!

- mas tu não estás cá! – contrapôs transportando consigo mágoa, deixando Javi impávido. 

- eu não posso viver aqui mas isso não invalida o facto de seres minha irmã e de me preocupar contigo!

- era tudo mais fácil se estivesses aqui…

- Tu sabes como as coisas são…e que não depende só de mim em viver cá.

- já te vais embora? – perguntou depois de um breve silêncio.

- daqui a pouco sim. Hoje foi um dia muito longo. E também acho que está na hora de te deitares, não achas? Precisas de dormir e esquecer este dia.

- vale… - Javi ajudou-a a desfazer a cama e depressa Melissa se deitou por baixo dos cobertores, mostrando quanto era visível o cansaço que sentia. – Javi?

- hum..

- posso pedir-te uma coisa? Tipo uma prenda de Natal?

- tudo o que quiseres.

- tens a certeza?

- tenho.

- dormes comigo esta noite? – Javi olhou-a mostrando quanto era visível a surpresa por aquele pedido inesperado. Mas como poderia ele recusar aquele pedido, ainda para mais, vindo dela? Sem conseguir dizer mais nada, apenas sorriu beijando-lhe a testa. Em questão de minutos, Melissa caiu num sono profundo envolta nos braços do seu irmão. Ainda que também tentasse combater contra isso, também Javi se deixou levar por todo o cansaço que sentia acumulado em si e que nem se apercebera disso, acabando por adormecer. Mas, ainda antes de fechar os olhos, deixou que a sua mente vagueasse pelo dia que tivera deixando-o a pensar no quanto tinha sido tudo impensável de acontecer.

~

A campainha tocou. Várias vezes tocava mas mesmo assim sentia um enorme peso na sua cabeça impedindo-a de se levantar. No fundo, não queria sequer acordar. Isabel podia contar as horas em que esteve acordada durante a noite e no quanto lamentava por aquele barulho a ter despertado. Mas quem quer que fosse, persistia e então, viu-se obrigada a levantar-se e seguir até à porta. Cambaleando pelos corredores, foi tentando despertar ao qual parecia uma tarefa impossível. 

- já vai… - com uma mão apoiada na parede e a outra na porta, conseguiu abri-la. A surpresa não podia ser maior ao deparar-se com aquelas duas pessoas na sua frente, tão bem conhecidas para si.

- o que fazem aqui?

***

Pois é, eu sei que demoro muito tempo a publicar capitulos mas tem sido muito dificil para mim conseguir escrever por diversos motivos! fui conseguindo escrever este enquanto andava de comboio a caminho da universidade ou mesmo nos intervalos. Não sei quando conseguirei deixar um outro capitulo, os meus planos estão bem apertados e por isso não posso prometer nada, com muita pena minha! :( 
mas espero que tenham gostado deste capitulo e eu prometo que as coisas irão mudar ( acho que começam a perceber um pouco isso). Só tive a pequena impressão que não gostaram muito da mudança do rumo, em especial pelo vosso feedback no ultimo capitulo que diminuiu um pouco! por isso peço, SE NÃO ESTIVEREM A GOSTAR DO RUMO, DIGAM! é sempre importante saber a vossa opinião! :)
bem, vou deixar-vos e obrigada a todas as leitoras que ainda têm paciencia para seguir as minhas histórias!
beijos
Diana Ferreira


segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Capitulo 17

O choque não poderia ser maior ao ver a chegada de Maria à cozinha. Tanto pela parte de Isabel como da própria Marisol. Como iriam explicar que ambas participaram em corridas ilegais mesmo que por motivos distintos? Isabel sentia-se completamente a vacilar e o próprio olhar e postura da sua avó só fazia aumentar o receio. 

- não é o que a avó está a pensar… - a voz de Isabel estava completamente quebradiça e notava-se o medo que a avassalava.

- então o que é? Eu ouvi bem…tu foste presa? Meu Deus que história é essa Isabel? – a sua voz imperava uma gravidade que fez a fez tremer. 

- eu posso…eu posso explicar!

- estou à espera disso! 

- eu… - as palavras faltavam. Elas tardavam a sair da boca de Isabel pois simplesmente ela não sabia o que dizer – foi um engano avó! eu juro que não fiz nada…eu…eu…

- fala de uma vez Isabel! Tu andas a participar em corridas ilegais? – a desilusão era algo que assombrava a voz de Maria e deixa-la com o coração apertado. 

- não! – ripostou de imediato Isabel – não avó, jamais participaria nisso… só que… - o silencio quebrava naquele lugar. Como iria explicar tudo o que acontecera? No final, Isabel não tinha muito por onde fugir e dar uma base de escapatória ao que acontecera há uns dias atrás. Não havia como delinear o assunto pois ela esteve presa. Ela participou em corridas ilegais. O facto de ter parado naquele lugar sem saber não iria atenuar ou apaziguar a gravidade da situação nem tão pouco explicar que participara para fazer ciúmes a Marisol. Não que a ideia de deixar a prima em maus lençóis não fosse tentadora, porque era. Mas isso não iria ajudar em nada…

- explicas tu Marisol? – depois daquele silêncio, Maria decidira pedir explicações a Marisol. O seu coração quebrou.

- eu avó?

- sim tu! – a voz de Maria elevou-se – tu estavas a falar sobre isso e se a tua prima não é capaz de falar, falas tu!

- eu...falei porque ouvi falar nisto… - acabou por falar. Marisol até poderia deixar Isabel em “brasas vivas” mas isso não a favorecia. Fora um descuido de Marisol pois implicaria também estar em maus lençóis. 

- e o que é que ouviste falar? Quem te contou? Quando é que isso foi?

- eu não tenho nada a ver com isso! eu…simplesmente ouvi falar que a Isabel estava nas corridas ilegais e no final a policia apanhou-os! – Isabel tremeu completamente. Baixou a cabeça mostrando todo o desalento que sentia. Já Maria, apenas a olhava em choque. Ficou a pensar como seria possível a sua neta ter feito uma coisa daquelas. Logo ela…não era possível. Isabel não seria capaz de tal coisa, ela não se meteria em maus caminhos, nada a fazia temer para isso. 

- isso é verdade Isabel? – ela continuava sem encarar a sua avó. não conseguia… a voz de desilusão de Maria fazia-a sentir-se com vergonha de si mesma e com medo de a encarar. – fala! Isso é verdade? – Isabel olhou-a. 

- É… - murmurou.

- oh Isabel! – barafustou – como é que foste capaz de fazer uma coisa dessas? – todo o coração de avó estava ser carregado de medo e aflição. Maria sentia-se incapaz de acreditar que uma coisa daquelas tinha acontecido. A sua neta a participar em corridas ilegais e acabar uma noite na prisão? Ficou a pensar onde errara. Onde estava o erro por tal coisa ter acontecido. Era difícil de imagina-la numa situação daquelas e a desilusão não podia ser escondida. 

- por favor deixe-me explicar! – pedia em suplica

- o quê? O que vais explicar? – Maria sentia-se exasperada - céus, porque nos ocultaste isso? que raio fizeste tu para te meteres em caminhos desses? – atirou num tom acusatório.

- porque já sabia que vocês não iriam acreditar em mim! Iriam tirar logo partido que eu estava a participar em corridas ilegais por vontade própria e isso não é verdade! – Isabel sentia-se desesperada.

- e tens uma justificação para isso tudo, é isso que queres dizer? 

- eu quero dizer que… - as palavras começavam a faltar – eu não sabia que ia parar aquele sitio… - desabafou sinceramente. No fundo, Isabel nunca imaginara que iria parar a um sitio daqueles. 

- não mintas mais! – Isabel olhou impávida para a sua avó.

- eu não estou a mentir! – a sua voz tremia 

- chega! – pediu – chega Isabel…tu passaste dos limites!

- que limites avó? por favor, acredite em mim, eu não fiz isso por crer!

- eu não sei como tu foste ficar assim, tão rebelde…nós ainda tentamos compreender os teus motivos para saíres desta casa mas agora com isto? Isto é inaceitável! Nunca pensei que fosses capaz de participar em corridas ilegais! Por amor de Deus, isso é perigoso! O que queres atingir com isso? pretendes chamar a atenção de alguém com essas atitudes? Podia ter-te acontecido algo mais perigoso tens noção disso? – Maria estava realmente chateada mas Isabel tinha ficado em choque com a atitude da sua avó. ela não estava a querer acreditar em si…como poderia tal coisa estar a acontecer? A sua avó deveria ser a primeira a defende-la, a acreditar em si e não a julga-la. 

- eu não acredito que você está a dizer-me isso…

- e queres que diga o quê? Nunca esperava uma coisa desta vinda de ti… - o choro de aflição parecia ter atingido em forte a Maria.

- esperava que você tentasse me compreender! – atirou sem demoras – e não acusar-me desta forma! 

- Isabel, não há pessoa neste mundo que queira mais o teu bem do que eu mas existem coisas que têm os seus limites! Como queres que compreenda que tenhas entrado por caminhos de corridas ilegais? Consegues-me explicar como?

- realmente…se me conhecesse mesmo bem não estaria a dizer isso! E é mentira, você não quer nada o meu bem! – Isabel começou a chorar. 

- não digas isso! – Maria parecia ficar ofendida com o que ouvira.

- quer que digo o quê então? Desde que aqui cheguei que as coisas não são as mesmas! Parece que de um momento para o outro deixaram todos de acreditar em mim, parece que virei a rebelde e a desilusão da família, não foi? 

- não é nada disso!

- é sim! Eu sinto as coisas sabe? 

- ouve Isabel… - Maria parecia não querer levar aquela conversa para uma grande discussão e que a deixava sem forças – discutir não nos leva lado nenhum! A asneira está feita e graças a Deus que nada de mal te aconteceu mas mostro bem a desilusão que senti ao saber disto…

- desilusão, é? – a voz de Isabel provinha apenas num murmuro insulável.

- sim, desilusão. Nunca esperei que fosses fazer coisas destas e isso deixa-me com o coração nas mãos! 

- sabe, também para mim acaba por ser uma desilusão…sempre pensei que você não fosse a primeira pessoa a apontar-me o dedo! – aquelas palavras estavam a magoar imenso a Maria. A sua idade já estava bem avançada, a sua saúde estava frágil tal como a própria alma o estava. E no fundo, aquelas palavras magoavam sempre. Sabia que tinha de perceber um pouco e talvez entender as razões de Isabel mas simplesmente sentia a situação a fugir-lhe do controlo.

- eu não estou a apontar-te o dedo…mas também como queres que te compreenda se não tiveste coragem para falar comigo e contar o que se passava? 

- e iria compreender? Iria adiantar?

- talvez! Mas assim não, assim as coisas pioram!

- ah claro, as coisas ficam piores do que já estão! – ironizou – olhe avó, tem toda a razão, discutir não nos leva a lado nenhum! Pode ficar descansada que comigo não terá mais nenhuma preocupação! – Isabel sentia-se entalada pela forma como aquilo estava a ser encaminhado. Por mais uma vez, sentia-se perdida e sozinha. Limpou as lagrimas e saiu disparada daquela cozinha. Só parou mesmo quando ouviu a voz da sua avó.

- Isabel não vás embora novamente!

- porquê? – ripostou num tom de voz alto – o que é que me vai fazer se for?

- deixa de ter essas atitudes infantis! Não é a ires embora que as coisas se irão resolver sempre que elas não te agradam! – já cansada, Isabel preferiu não falar. Não se sentia bem ali estando exausta psicologicamente de tudo o que lhe estava a acontecer. Talvez o erro de tudo fosse a sua vinda para Murcia. se calhar não deveria ter vindo para ali…talvez assim fosse mais feliz. Quem sabe…ou talvez não. Quem lhe dava garantias que ali também não podia ser feliz? 



***


Isabel deixara-se cair sobre a madeira daquela pequena ponte. Encostou-se às grades e não foram precisos mais do que meros segundos para ser invadida novamente pelas lagrimas. Na sua cabeça, só uma pergunta soava: até quando? Até quando a sai vida iria parecer um rebuliço sem fim? Até quando se iria sentir tão vazia e sozinha? Sentia-se péssima por discutir daquela forma com a sua avó, a pessoa que mais estimava e amava na sua vida…e o seu avô sem duvida que eram os amores da sua vida. Ensinaram-lhes tantas coisas boas, deram-lhes praticamente toda a educação. Os seus pais passavam imenso tempo a trabalhar em hospitais havendo uns anos que prestaram serviço como médicos sem fronteiras, ficando Isabel a encargos deles. Foram dois anos tão bons, tão seguros…tão protectores. E agora estava ali, com um peso enorme na sua consciência de ter falado coisas feias a uma pessoa que cuidou imenso de si. 

- estás bem? – algo sobressaltou Isabel, ou melhor uma voz a fez sobressaltar. Olhou para o seu lado e reparou na presença de alguém que conhecia mas que era totalmente inesperada. Depressa tentou limpar as lagrimas e esconder o seu rosto por entre os seus cabelos compridos.

- sim, estou - ela tinha sido curta e grossa na forma como respondera. 

- não é o que parece! 

- já disse que estou bem! – ripostou num tom de voz alto e agressivo.

- mas estás a chorar…e estás sentada no chão no meio da ponte!

- mas o que é que tu queres? – gritou-lhe ao mesmo tempo que se levantava e encarava Javi desde que ele ali chegara.

- hei, calma! – respondeu na defensiva – eu estava de passagem e vi-te aqui. Não achei isso normal ainda para mais sendo noite de Natal! – gerou-se um silêncio. Isabel olhava-o de um jeito bem frágil e parecia que a qualquer momento iria quebrar. Javi notava bem isso e talvez por ver uma Isabel tão frágil, decidiria ficar ali, à vanguarda. 

- eu não tenho para onde ir… - as lagrimas voltaram a sucumbir o seu rosto e Javi ficou completamente surpreso – simplesmente já não me resta nada para que possa passar um Natal digno de tantas famílias que existem aí…sinto-me como se tivesse perdido tudo e no fundo a culpa é toda minha! – Javi via na sua frente, uma rapariga que mantinha os braços amarrados um no outro e bem junto ao peito, indefesa, a chorar, completamente frágil. Os seus olhos vermelhos, a pele inchada, o rosto cansado…uma Isabel tão diferente daquilo que estava habituado a ver. Sem falar no quanto ela tremia de frio e com apenas uma camisola fina a pousar sobre o seu corpo.

- estás gelada…toma! - Javi tirou o seu casaco preto de malha pousando-o sobre as costas de Isabel. - Tu não estás bem…há quanto tempo estás aqui? – ela tomara percepção que realmente estava com imenso frio. Perdera a conta ao tempo que esteve a vaguear por aquelas ruas e como o tempo estava gelado. Esquecera-se também do pormenor de não ter trazia do um casaco mais quente e o quanto lhe estava a saber bem sentir o calor que provinha daquele casaco e a satisfação que isso lhe trazia. 

- não sei… - respondeu num murmuro

- porque estás aqui? 

- discuti com a minha avó…ou melhor, ela descobriu o que se passou nas corridas de motos. 

- eu juro que não fui eu que falei! – falou de forma automática.

- eu sei… - sussurrou – eu estava a conversar com a Marisol e a minha avó ouviu a parte da conversa onde falávamos sobre isso. – novamente, gerara-se um certo silêncio. Apenas se ouvia o soluçar de Isabel já que Javi não sabia o que dizer. O corpo dela começara a balançar mostrando a fraqueza que a abrangia. Valeu a Isabel os reflexos de Javi que a segurou rapidamente. 

- joder! Tu comeste? - resmungou

- não…mas eu também vou para casa… - Isabel começou a afastar-se e estava prestes a virar costas quando a voz de Javi a fez parar.

- eu sei que não tenho nada a ver com isso e muito menos que me meter mas…tu disseste que não tinhas para onde ir – o olhar de Isabel centrou-se nele – como é que vais para casa? – Ela mirava-o atentamente. O que levava Javi a estar ali ao pé dela? E justamente ele? Aquele presunçoso, aquele que não gostava dela e nem tão pouco Isabel gostava dele? O que será que os movia para estarem ali? E principalmente para Javi não a estar a deixar ir embora? No fundo, nenhum deles o sabia. Javi estava simplesmente a ser movido por uma onde de compaixão que nunca vira. Vê-la naquele estado de apatia estava a deixa-lo com uma certa curiosidade. Sim curiosidade…uma certa vontade em querer saber mais dela, em conhecer a faceta frágil de uma rapariga que para si, não passava de uma irreverente. 

- eu cá me desenrasco…

- hei, espera… - Javi puxa-a pelo braço – anda comigo. – Isabel olhava-o com uma certa desconfiança – anda! – ela não dissera nada, simplesmente o seguira. Saíram da ponte e caminharam para que parassem em frente a uma carrinha. Javi caminhou até à zona de trás tirando de lá algo que Isabel não percebera logo à primeira. – segura…mas cuidado que está quente! 

- o que é que… - Isabel não estava a perceber mas assim que reparou na carrinha que era, arregalou os olhos. Assim que cada um tinha uma malga na mão, caminharam até a uma zona mais recatada, onde tinham umas mesas. Sentaram-se.

- Hoje é noite de consoada e todos os anos há uma carrinha da associação onde fazemos voluntariado para distribuir sopa quente aos mendigos. E eu aceitei ajudar…era isto que estava a fazer na rua quando te vi. – Isabel simplesmente olhava-o atónica, sem dizer uma única palavra. Mil pensamentos sobrevoavam a sua mente mas nenhum era capaz de explicar aquele momento tão imprevisível. – está frio…acho que esta sopa vai aquecer-te…e a mim também! Javi começou a comer um pouco daquela sopa e Isabel seguia-lhe o exemplo.

- logo tu?

- como assim?

- e logo tu tinhas que estar aqui? – a sua voz não passava de um sussurro – isto não faz muito bem a tua onda…tu o próprio referiste muitas vezes que não tens cara de misericordioso. Ou vais me dizer que estás aqui porque te deu pena dos pobres e preferiste fazer uma boa acção? – ele olhou-a. Olhou-a e deixou-se ficar em silêncio apenas a mira-la. Acabou por deixar escapar um sorriso irónico.

- tu também não tens cara de quem goste de passar o Natal nas ruas e aqui estás.

- o meu caso é diferente! – tentou defender-se enquanto saboreava um pouco daquela sopa quente.

- também o meu.

- eu nunca passei uma noite assim… - a sua voz frágil e chorosa voltou a assombra-la – sempre passei rodeada de gente, com a família…de volta de uma mesa cheia e confortante. – ela começou a mirar a sopa deixando de o encarar – um ano passávamos cá e o outro era passado na minha outra família em Lisboa… só que mesmo assim as coisas nunca foram fáceis mas para mim mesma. Por mais amor que recebesse eu sentia sempre algo que fazia falta. Talvez porque sou adoptada que me sinta assim…não sei…talvez se fosse criada com eles desde bebé não me sentisse desta forma mas quando os meus pais me adoptaram eu tinha quase três anos. Eu tinha passado esse tempo todo com uma outra família, com outra mãe e pai, em outro lugar, com outros costumes. É simplesmente sentir-me presa a um passado que não volta mais a ser meu mas que foi. E o que mais me entristece é não me conseguir lembrar de nada! Tenho ideias muito vagas…não tenho uma única fotografia da minha outra família porque simplesmente fui abandonada! 

As lagrimas tomavam conta do seu rosto. As palavras fluíam de si com uma naturalidade assustadora permitindo que desabafasse todos os seus tormentos mesmo aqueles que nunca os dissera. Talvez fosse mesmo isso que Isabel precisasse…de desabafar e ter alguém que a ouvisse, mesmo que fosse Javi. Este apenas a olhava calmamente e sem saber o que dizer. Vê-la ali, tão frágil deixava-o à toa… 

- Joder, eu nem deveria de estar a falar sobre isto! – Isabel tentou-se recompor e limpou depressa as lagrimas. Por mais vontade que sentisse em falar sobre aquilo, sentia que não era o momento certo e nem com a pessoa certa. Ela nunca desabafara coisas daquele género nem com a sua melhor amiga, porque estava a fazê-lo com ele? Justamente com ele? Talvez porque se sentia tão em baixo, tão sem forças ou porque estava a passar aquela quadra natalícia junto de dele? Pressentindo que Isabel iria sair da mesa, Javi prende-lhe a mão. 

- não vás, espera… - ela olhara-o expectante – queres me ajudar a distribuir o resto das sopas? Uma ajuda é sempre bem-vinda – explicou ao sentir a falta de reacção por parte dela. 

- pode ser – disparou. Porque não? O que travaria Isabel a não aceitar e passar aquela noite de maneira diferente? Talvez ela precisasse daquilo. De um alento diferente, encarar a realidade e talvez encontrar um pouco de conforto para todos os seus tormentos. E assim saíram dali, passando o resto do final da tarde a distribuir os alimentos pelos mendigos. Alguns já eram conhecidos tanto de Javi como de Isabel. Já haviam feito aquilo algumas vezes mas ela percebera que a cada dia, encontrava-se novas pessoas a dormir nas ruas. Era triste…eles estavam sozinhos, ao frio, à fome. Sem ter para onde ir. A vida nem sempre era justa e Isabel sabia disso e percebera à medida que chegava perto de cada pessoa entregando aquele pequeno suplemento alimentar. Aos poucos, todo o seu coração ia aquecendo contrastando com o frio que se fazia sentir naquela cidade. A confusão que sentia dentro de si ia-se apaziguando dando lugar a uma calma confortante. 

- agora podes dizer… - Isabel e Javi tinham acabado de distribuir as sopas que tinham disponíveis. Ainda estiveram à conversa com mais alguns membros da associação mas agora encontravam-se sozinhos – ainda não disseste porque estavas aqui. – Javi olhou-a.

- estás a falar do quê?

- porque estás a fazer voluntariado na noite de Natal se não tínhamos a obrigação de estar cá. E já disse…eu não te acho com cara de misericordioso.

- interessa-te tanto assim saberes isso? 

- hum…por acaso…confesso que tenho a minha curiosidade aguçada para saber.

- então vê lá se não controlas essa tua curiosidade aguçada demais! – ripostou. Javi começou a caminhar em direcção oposta da zona onde se encontravam.

- juro que não te entendo! – acabou por responder Isabel depois de o deixar caminhar alguns metros. Javi parou, encarando-a. – num momento tanto consegues ser calmo e atencioso como no minuto seguinte és um bruto! És sempre assim tão inconstante? Eu fiz-te uma simples pergunta e olha só como ficaste. – Era aquilo que Isabel não conseguia entender nele. Há minutos atrás tinha sido tão atencioso consigo e agora tratava-a com brusquidão. Seria assim com toda a gente? 

- eu simplesmente não quero falar sobre isso, pode ser? 

- pode sim! – ripostou - Aliás nem precisas de falar nada até porque de ti não quero saber nada… - murmurou visivelmente chateada. Por momentos ficaram ali, a uma dúzia de metros de distancia sem nada para dizer ou fazer. Algo os prendia ali e não sabiam o quê. Javi mirava distraidamente as casas que estavam à sua frente enquanto que Isabel mexia no cabelo. Achando aquele momento patético, Javi começa a andar até junto da sua mota que estava perto dali. Isabel fizera o mesmo e caminhou até à zona do seu carro que já estava mais distante. Ele acabara mesmo por se deixar sentar na berma do passeio. Deixou a cabeça descair-se sobre a sua mão apoiada na perna e fechou os olhos. 

“agora podes dizer… ainda não disseste porque estavas aqui”
“eu simplesmente não quero falar sobre isso, pode ser?”

Javi simplesmente não conseguia falar sobre o motivo dali estar. No fundo custava-lhe admitir a si mesmo. Num certo ponto, Isabel tinha razão, quando referia que ele não tinha cara de misericordioso. De facto, ele não tinha mas talvez estar ali fosse uma escapatória para o seu real problema. De não pensar que tinha também uma família e que não estava ao pé dela. Que já fazia três anos que passava o Natal sozinho. Desde que fora renegado pelo seu pai, desde aquele acidente…
Estremeceu.
Aquele acidente era uma memória viva dentro de si, algo que latejava cada vez mais forte…aquela noite que roubara não só a vida do seu amigo como a sua também. Ali estava o motivo que não queria explicar a Isabel. Simplesmente passava o Natal fora de casa porque aquele acidente tinha sido a sua sentença. O seu pai nunca aceitara a forma como tudo tinha acontecido e a inocência dele tinha sido posta em causa. Lembrava-se de que quase ninguém acreditava em si tanto que no final tinha sido considerava culpado por aquele acidente. E Javi sabia tão bem que no fundo a culpa não era sua. Não…não podia ser. Ele jamais faria algum mal a Paco. Jamais magoaria o seu irmão de coração. Jamais…

- toma! – os pensamentos de Javi foram abruptamente interrompidos pela chegada repentina de alguém. Abrindo os olhos viu Isabel a sentar-se do seu lado e com uma saca na mão.

- o que é isto?

- abre e vê! – respondeu com uma certa petulância. Javi assim fez e tirou de dentro do saco um cachorro quente. Ele olhou-a um pouco confuso. 

- eu não pedi nada.

- ouve, eu estou cheia de fome e aquela sopa não me satisfez. Eram os últimos, por isso se quiseres aproveita e come! – Isabel começou a comer um pouco do seu cachorro que estava quente mas que sabia-lhe bem à fome que tinha. Javi fez o mesmo e também não pôde de deixar de notar que aquele petisco viera em boa hora. Ambos comiam, em silêncio. Estranhamente juntos, ali estavam…a partilhar de forma inesperada aquela noite fria. Algo fizera denotar Isabel para que voltasse ali. Seria o facto de que ambos não tinham para onde ir e que as únicas companhias restantes eram a de um e a do outro? Que inexplicavelmente só se tinham um ao outro? 

- toma, também trouxe bebidas… - Isabel deu-lhe para a mão uma garrafa de cerveja igual à sua. Javi aproveitou de imediato para dar um gole já que aquele cachorro para além de estar saboroso estava bem picante.

- Feliz Natal… - depois de algum silêncio, Javi interrompe-o. Ela olha-o um pouco surpresa e fica a mira-lo. Sentiu um nó no estômago ao relembrar do sítio onde estava e como ali foi parar, fazendo-a lembrar que tinha discutido com a sua avó, saiu de casa e veio parar à rua. Aquilo fê-la quebrar mas não havia só a parte triste mas como também a parte inesperada, tal como, ter Javi ao pé de si, oferecer-lhe o seu casaco, dar-lhe sopa e irem ambos distribui-las aos mendigos. De facto, esta a ser uma noite tão inesperada e surreal, onde nada parecia ser verdade e todos os acontecimentos apareciam de uma forma fugaz e incapaz de serem controlados. 

- Feliz Natal para ti também… - sussurrou.




sexta-feira, 25 de julho de 2014

Capitulo 16

As horas passavam. Dolorosamente passavam. Aquele relógio fazia tique-taque sem parar e era o único barulho que se fazia soar no meio daquela sala escura e fria. Era o barulho dos ponteiros e o incessante bater dos pés de Isabel. As suas pernas tremiam, o seu corpo estava gelado, os nervos estavam em alta. Eram três e vinte e duas da manhã e estava ela no sitio onde jamais esperaria pisar os pés. Numa cela da esquadra da policia. O seu estômago dava voltas quase expelindo tudo o que ainda restava no seu conteúdo. Isabel repugnava-se por aquela noite existir. Não devia estar ali. Não devia. E agora? Como iria sair? Como iria explicar à sua família que andou em corridas ilegais e que foi parar à policia? Jamais a perdoariam. Jamais. Sem falar nos seus pais que a mandavam de volta para Lisboa sem pensar duas vezes. Não que essa ideia de voltar para sua casa, fosse insuportável, bem pelo contrário. Ela até preferiria ir embora daquele lugar…odiava aquilo. E odiava-se a si mesma por ter pensado que as coisas poderiam ser diferentes. Estava a ser tudo igual ou pior. Bem pior…
Já Javi, mantinha-se sereno, em comparação a Isabel. Sentado ao seu lado, permanecia calado e com uma expressão indecifrável. Parecia que a sua cabeça estava longe dali. Também sabia que estava em maus lençóis e que estar na esquadra era algo que o deixava tramado. Apesar de ter o seu advogado a tratar da libertação, nada era garantido que saísse dali ileso. Estavam presos por supostamente participarem em corridas ilegais e Javi insistiu perante o seu advogado que era mentira. Não podia dizer o contrário já que tinha um historial suspeito. Agora só restava esperar e sair dali o quanto antes.

- como é que tu consegues? – Isabel começou a falar. Javi olhou-a. – Explicas? Estamos presos e tu estás com essa calma toda?

- queres que faça o quê? Que solte um grito de misericórdia? Já me chegas tu aqui do meu lado que não paras quieta! – resmungou

- é normal sabes? Estou presa e sabe-se lá como é que isto pode acabar! És mesmo imbecil e a culpa é tua!

- Minha? – ele olhava-a incrédulo – a culpa é minha? Que eu saiba foste tu que saltaste para cima da minha moto, não fui eu que te arrastei e muito menos trouxe-te para sítios onde não deverias estar. Não tenho culpa que a princesinha resolva ir para um lugar que não lhe compete!

- Ah pois eu esqueci-me! Tu já estás habituado a isto não é? Afinal tu não és peça que se cheire, nem daqui nem de longe! – Ripostou completamente furiosa. Ela no fundo sabia que Javi tinha razão. Ela estava ali, no fundo, por culpa sua. Porque aceitou o convite do Marco, porque quis fazer ciúmes a Marisol e por isso é que estava ali. Por culpa sua. Javi iria ripostar mas a chegada de alguém impossibilitou-o disso. Olhou na sua frente e viu o guarda prisional.

- Javier Martinez?

- sou eu.

- pode sair! – Javi levantou-se num ápice e pegando no seu casaco que estava despojado ao seu lado, saiu dali. 

- estou livre?

- sim. – Isabel olhava para aquela cena impávida. Também ela se levantou. E ela? Onde ficaria no meio daquilo tudo? Não podia ficar ali, de modo algum. Porque é que Javi se estava a ir embora e ninguém falara no seu nome?

- Hei e eu? – perguntou em pânico. Javi olhou-a quase como se apercebera que afinal ainda restava ela ali.

- tu o quê?

- eu não vou ficar aqui!!

- mas ele não falou no teu nome… - Javi encostou-se às grades – se calhar ficas aqui.

- Não! – gritou – não fico nada aqui! Se tu saíste também eu tenho de sair!

- não chamaste nenhum advogado?

- achas? – a sua voz estava a tremer-lhe – a minha família matava-me se soubesse que vim aqui parar! – ela gritava já com o medo a dominar-lhe todo o seu estado de espirito.

- e achas que a minha família também não se vai passar quando souber? Lo siento…não posso fazer nada – Javi preparava-se para virar costas quando sentiu a mão dela a prende-lo pelo braço.

- espera! Não me deixes aqui! Por favor Javi…

- eu não posso fazer nada por ti!

- podes sim! Fala com o teu advogado não? Tirou-te a ti porque não me pode tirar a mim?

- porque haveria de fazer isso?

- ai que ódio! – gritou – andá lá! – Javi percebia bem o desespero que estava estampado no rosto de Isabel e por isso, apoiou os cotovelos sobre a grade, encarando-a.

- com uma condição.

- qual?

- tens de me pedir desculpa.

- o quê? – ripostou – desculpa por quê?

- de quê? Olha deixa cá pensar…talvez porque me deitaste café quente em cima de mim!

- ainda isso? – ripostou exasperada.

- ainda? Por causa disso eu estou a fazer voluntariado como se tivesse vida de misericordioso. E a culpa é tua! Por isso…quero que me peças desculpas.

- nem morta! – gritou-lhe.

- tens a certeza? 

- te ódio cabrón!! – gritou abanando as grades

- vale, vale… - ele levantara as mãos em sinal de defesa – eu tentei. Tu não quiseste. Adíos! 

- não, espera! – Javi olhou-a expectante

- o que foi? Mudaste de ideias?

- desculpa – disse passado alguns segundos de silencio. Falou num tom de voz tão inaudível que parecia não passar de um murmuro.

- o que disseste? Eu não ouvi.

- eu já disse!

- mas disseste o quê?

- o que tu querias que eu dissesse!

- e o que é que queria que tu dissesses? – ele estava visivelmente a irrita-la. E estava a conseguir.

- Desculpa! – gritou 

- desculpa porquê?

- Desculpa por ter-te virado café em cima! – gritou de uma só vez. Javi olhava-a satisfeito.

- e vais voltar a repeti-lo? – ela revirou os olhos.

- não… - respondeu trincando a língua quase repugnando-se pelo que estava a dizer.

- linda menina! Custou assim tanto? – aquele sorriso trocista estava a deixa-la tola. No seu intimo, Isabel queria afoga-lo em café quente só pelo que estava a obriga-la a fazer. Acabou por se desviar e abriu a porta da cela. – podes sair. – Isabel olhou-o desconfiada.

- tens de falar com o teu advogado primeiro.

- ah…isso? não é preciso. Ele pagou logo as duas fianças. – os olhos de Isabel esbugalharam-se. Javi sorriu. Ele fizera tudo aquilo de propósito. Ele já sabia que Isabel tinha a fiança dela paga só quisera testa-la. Ela nem queria acreditar no que acabara de acontecer e no quanto tinha sido burra por cair na conversa de Javi. Ele fez de propósito, queria de uma forma propositada que ela fizesse aquilo, que lhe desse o pedido de desculpas.

- tu fizeste de propósito! – gritou-lhe ao sair da cela – que cabrão! – sem pensar em mais nada, Isabel parte para cima dele mandando-lhe murros contra o peito dele – tu vais-me paga-las, estupido! – Javi ria-se. 

- nem imaginas o quanto eu gosto de te ver assim, brava…zangada!

- odeio-te! – garantiu com todas as suas forças. Javi virou-lhe as costas ignorando-a. Isabel sentia-se magoada. Aquela noite estava a ser um tormento e já não bastava isso como também o jogo sujo de Javi. A sua vontade era de lhe bater até não puder mais. Era chamar-lhe todos os nomes possíveis e imaginários, sendo que nem isso bastaria. Mas no fundo não podia repugna-lo assim tanto, afinal ela só estava ali por culpa sua. Quem a mandou correr com o Javi? Quem a mandou ser tão impulsiva? 
Assim que chegaram à recepção foram brindados pela presença do advogado e do policia. Ficaram mais uns minutos a conversar, onde ouviram os avisos ao qual estavam de escuta. Nada de corridas, nada de motas. Conseguiram sair de lá e já eram quase quatro da manhã. Isabel sentia-se demasiado cansada, doíam-lhe as pernas e agora era acusado as dores que sentia nos pulsos, devido à força que exercera ao abraçar Javi ainda durante a corrida. Estava de facto cansada.

- vocês ouviram…por isso espero que não seja chamado aqui pelo mesmo motivo.

- podes ficar descansado, isto foi uma vez sem exemplo – disse Javi.

- muito bem. Querem boleia?

- eu quero! – Isabel respondeu de imediato querendo evitar, a todo custo, mais uma viagem junto de Javi.

- e tu Javi?

- eu vou de mota…que eu saiba não me tiraram a carta, por isso posso conduzir.

- tu é que sabes – Juan, o advogado, vira-se para Isabel – vamos?

- sim… - e assim foram. Cada um para o seu canto. Tinha sido uma noite em cheio e completamente inesperada. Isabel só queria esquecer o que acontecera, que encontrara a sua prima, o quanto ela lhe provocou, o facto de ter corrido com Javi, a loucura desse momento, o despiste da policia, pararem à esquadra, a chantagem dele…e claro, aquele beijo. 



***



- como sabem, é importante o facto de fazermos serviço na comunidade pois a nossa função enquanto enfermeiros é demasiado grande para ficar apenas pelos hospitais… - a professora falava. eram nove horas da manhã e o dia estava a custar a passar. Isabel sentia-se demasiado cansada. Só conseguira dormir três horas perdera a conta aos sonhos que tivera com motas. Ser perseguida pela policia, ficar dias e dias presa, a família que ficou contra si, até em Javi sonhara. Aquele maldito nem em sonhos lhe saía do pensamento…

- pst….pst! – Adriana dá um encontrão a Isabel, fazendo-a despertar – hei, bom dia!

- ah?

- bom dia!

- o que foi?

- isso pergunto eu…é que nem quero imaginar o que andaste a fazer de noite. Já reparaste na tua cara? 

- prefiro nem falar nisso.

- o que se passou?

- depois conto-te…

- oh vá lá, conta agora!!

- não! Se te contar agora tu ficas louca. Já disse, conto-te na hora do almoço…

- está bem, está bem… - A aula continuou mas para Isabel nem tinha começado. Sentia-se bem longe dali. Completamente a leste e com a sua cabeça a pesar-lhe imenso. Mais duas horas e aula tinha terminado. Apressaram-se a sair da sala e rumaram até ao exterior. Estava bom tempo e sentaram-se num dos bancos.

- podes contar agora? – pedia Adriana em êxtase

- sabes que… - Isabel acaba de ser interrompida pela chegada de alguém. Olha na sua frente e vê uma das pessoas que não queria ver e ao qual estava um pouco magoada.

- posso? Preciso de falar contigo!

- o que queres? – ela tinha sido frontal e Marco percebera que ela estava chateada.

- falar sobre ontem à noite…eu já soube que a policia apanhou-vos!

- policia? – interrompeu Adriana

- eu já volto Adriana! – Isabel levantou-se e caminhou até a uma zona mais recatada. Marco seguiu-a.

- desculpa…

- tu não quiseste de saber de mim. Porquê? 

- hei, não sejas assim! nós tivemos de fugir da policia, quando conseguimos despista-los soubemos que tinhas parado na esquadra!

- pois é, parece que o azar foi mesmo todo meu!

- também porque é que foste correr com o Javi?

- não tens nada a ver com isso! – ripostou – só podias ter ligado não? Afinal levaste-me para aquele sitio e acabei a noite presa!

- já te pedi desculpas. Isto não costuma acontecer…

- desculpas não aceites.

- hei…vais ficar chateada comigo? Fiquei mesmo preocupado contigo! Hoje faltei ao trabalho para vir aqui pessoalmente ver como estavas. – Isabel olhou-o atentamente e ficou a pensar até que ponto estaria ele a dizer a verdade. De facto, sentia-se magoada por Marco não ter dito nada mas ele estava ali. De facto, tinha de valorizar aquela atitude mas por outro, ele nem quisera saber dela. Será mesmo que não? Se assim fosse, não estava ali. 

Ao fundo, reparou na chegada de uns quantos rapazes que vinham todos do pavilhão. O barulho deles era bem intermitente e nem Isabel conseguiu ficar alheia a isso. Reconheceu um deles…era Javi. Conversava animadamente mas também ele deu pela sua presença. Parecia quase premeditado o facto de ambos se olharem. Ele fixava o seu olhar nela mas Isabel preferiu ignora-lo acabando por dar um abraço a Marco. 

- obrigada…por teres vindo até cá – respondeu encarando-o de novo.

- mas está tudo bem? Aconteceu-te alguma coisa ontem?

- sim, está tudo bem…e se não te importares prefiro não falar nisso..

- vale, tens razão…mas olha, podemos marcar outra saída? Desta vez escolhes tu o sitio!

- não sei…

- anda lá… - ele pedinchava – dá-me uma oportunidade para provar que sou boa pessoa! – Isabel gargalhou.

- vale. Tens uma única oportunidade de te redimires!

- gracias…



***



Os dias foram passando. Estava-se em meados de Dezembro e faltavam quatro dias para o Natal. Aquela cidade não parava…eram as pessoas que passeavam, faziam as compras de natal, as luzes que iluminavam toda a cidade, as músicas natalícias, o cheiro típico daquela quadra tão especial. Tudo se tornava especial em Dezembro. Era algo mítico, algo que acabava por unir as pessoas. Partilha, generosidade, amor, paz, reunir com as famílias…sem dúvida, uma época especial e que todos ansiavam para que chegasse. 
Adriana, Ricardo e Renato aproveitavam aquela manhã chuvosa para fazerem as malas. Estavam de partida para Portugal, onde iriam passar a quadra natalícia junto das famílias. A casa estava um alvoroço. Entre malas espalhadas, correria em guardar tudo, ninguém queria se esquecer de nada e ter tudo pronto para que, daqui a umas horas, rumassem para o aeroporto.

- os teus pais não vêem cá?

- não… - respondia Isabel enquanto via Adriana a arrumar as suas coisas – eles vão ficar a fazer noite no hospital – era bem visível o desalento que trespassava Isabel. Evitara falar nisso nos últimos dias porque não queria incomodar os seus amigos com as suas lamurias. Não quando os via tão animados para regressarem a suas casas.

- oh Isabel… - Adriana sentou-se do seu lado – anda connosco para Lisboa! Já que não queres ir para a casa dos teus avós, ao menos ficas connosco…

- obrigada mas não. Eu fico cá…

- até quando é que vais ficar assim com os teus avós? Não achas que estás a ser um pouco injusta? Deverias aceitar o convite deles em passar o natal lá. Caramba, são a tua família! Eles preocupam-se contigo e querem-te de volta! Há quanto tempo estás assim? já vai fazer um mês Isabel! Não tens saudades deles? – ela olhou para a sua amiga. Adriana percebeu o quanto ela queria dizer a verdade, o quanto aquela situação a atormentava. O quanto Isabel sentia a falta da sua família.

- tenho…eu tenho saudades deles. Claro que sim. Só que… - parecia que lhe faltavam palavras – eu não me sinto bem aqui, acho que foi um erro ter vindo para Múrcia! 

- um erro? Oh Bela não digas isso…tu estás magoada, por isso é que pensas que foi um erro teres vindo para cá.

- não é por estar magoada Adriana! Tu sabes bem que eu não queria vir. Eu não queria Múrcia! e sabes também que só coloquei a hipótese desta universidade por causa da minha mãe. Por mais que eu ame os meus avós, isso não basta para me sentir feliz! Eu passei vinte anos a sentir-me deslocada. Sabes o que é isso? saberes que não pertences aquela família? Que eles não são do teu sangue? Sabes o que é tu não poderes dizer com quem és parecida porque no fundo não és com ninguém? Não há nada fisicamente que te ligue aquele mundo? Sentires-te desconectada, cheia de fragmentos, quereres tanto conhecer as tuas origens e não saberes por que ponta começar porque não existe raio de ponta nenhuma?! É passares vinte anos da tua vida a imaginares como serias se a tua mãe biológica não te tivesse abandonado, porque o fez, onde é que ela está…ter uma outra família e não saber onde ela está! Querer descobrir mas ninguém te ajudar! Por mais que os meus pais adoptivos e os meus avós tenham sido incansáveis comigo, eu não pertenço a esta família. Por mais amor que me tenham dado, por mais que quisessem que fizesse parte deles, eu não consigo sentir-me parte deles. Não enquanto eu me sentir perdida, sem saber as minhas origens, sem saber quem eu sou! Percebes? – Adriana olhava para a sua amiga um tão pouco sem palavras. Isabel estava tão perdida e isso era bem visível. Os seus medos, angustias, duvidas, receios e esperanças…em tão pouco ela conseguira resumir isso em poucas palavras. 

- oh querida…. – Adriana puxa-a para junto de si – tu vais conseguir encontrar isso tudo. As tuas duvidas irão passar…vais ver! – Sem conseguir aguentar mais, Isabel derrama as ditas lágrimas que tanto a atormentavam. Um choro de quem só queria encontrar o seu verdadeiro caminho. Uma dor desamparada. Uma alma perdida à procura de ser encontrada.



***


Hoje era dia de consoada. Estava frio, apesar do sol que se fazia sentir – sol esse já escasso, nada fazia subir as temperaturas daquela cidade. As pessoas corriam de um lado para o outro atarantadas com as últimas compras de Natal. Nada parecia faltar para mais uma consoada passada junto das famílias. Só que nem em todos os casos se verificava isso. nem todas as famílias estavam reunidas. Nem todos os casais estavam de pazes feitas. Haviam famílias de costas voltadas, pais que não visitavam filhos e filhos que não viam seus progenitores há tanto tempo. Laços desfeitos, pessoas solitárias, havia solidão, tristeza, desconsolo. Porque nem todos são perfeitos e nem todos passam aquela quadra como deveriam. Nem todos terão essa oportunidade. 
Isabel tinha acabado de chegar à mansão. Arrepiou-se só de lembrar há quanto tempo não estava ali…já passara um mês. Lembrara-se da última vez que ali esteve e era uma recordação demasiado lamentosa para ser relembrada mas como também para ser esquecida. Depois da insistência dos seus avós, decidira aparecer ali. No fundo, Isabel morria de saudades deles, queria tanto estar com eles…

- buenos dias Isabel! –a voz suave de Juan fê-la despertar. Olhou de relance e encontrou-o junto às escadas – que bom tê-la por aqui!

- Hola Juan! Também é bom puder vê-lo!

- ainda hoje falamos em si…os seus avós estavam ansiosos para receber a sua visita! – um certo desconforto instaurou-se nela.

- eles…estão lá dentro?

- sim! Acabaram de tomar o pequeno-almoço há cerca de meia hora.

- vale…vou entrar então.

- faça favor.

- até já Juan… - Isabel subiu as escadas que davam acesso à porta principal. Tudo se mantinha igual até mesmo a sensação de nunca ali ter saído. Seria um presságio? Algo que gritava dentro de si para voltar a morar ali? Respirou fundo e abriu a porta que já estava encostada. Conseguiu distinguir o misto de vozes provenientes do fundo. Entrou sorrateiramente e precisou apenas de alguns segundos para as distinguir. Um sorriso invadiu o seu rosto ao ouvir o riso afável dos seus primos. Podia adivinhar que era Enrique, o mais travesso. Juntamente com ele, estava Francisco. Eram inseparáveis os dois. Provavelmente estariam a jogar consola, era o maior vicio de ambos. Continuou a caminhar e ao olhar para o seu lado reparou numa das fotografias que estava despojada sobre a mesa. Isabel deveria ter os seus seis anos. Estava debruçada sobre o colo do seu pai, junto ao rio. Sem saber o porquê, ficou petrificada a olhar para ela…nem ela se lembrava de ter sido tirada, nem mesmo daquele momento. Aliás, porque é que não se sentia capaz de recordar o seu passado? Porque não se lembrava nada da sua vida passada junto da família biológica? Porquê a existência daquele lapso na sua memória?

- Isabel? – assustada, ela dá um pequeno passo para trás. A voz do seu avô sobressaltou-a de uma forma inesperada. Olhou na sua frente e viu-o. Com a sua bangala, o chapéu cinzento, os olhos escuros e intensos, aquela altura impassível, o seu jeito inigualável…e ali estava, parecendo engolido pelo passar da idade, a olha-la bem no seu jeito protector, aquela saudade trespassada no sorriso já cansado. Ali estava, quase implorando para que ela o abraçasse e ele a apertasse daquele jeito que só ele o sabia fazer. E assim fez. Isabel jugou-se nos braços de Javi abafando o seu choro contra o peito dele. E Javi abraçou-a, confortou-a, no seu jeito paciente deixou-a consolar-se da falta que aquilo que fazia, tal como só um avô o sabe fazer.

- oh avô…

- mi enana…tu vieste! – Isabel desprende-se dos braços dele, encarando-o.

- você está diferente… - ela encarou-o quase como examinando cada retalho dele – e está mais magro! Tem-se alimentado em condições? Eu sinto-o mais abatido, aposto que tem feito esforços! – acusou-o. Javi gargalhou.

- já tinha tantas saudades da minha Maria mais nova! – Javi coloca-lhe o braço sobre os ombros, puxando-a para junto de si. Isabel não se coibiu em deixar escapar um sorriso. Que falta que fazia-lhe ouvir aquela gargalhada calorosa, sentir os braços fortes do seu avô…

- onde está a avó?

- provavelmente a chatear a cabeça a alguém… - Isabel olhou-o de relance – não lhe digas nada mas… - Javi sussurrava – ela hoje está um pouco chata. Ah e também está mais teimosa do que já costuma ser… - Isabel sorriu ao ouvi-lo. Também sentia saudades daquilo.

- mas porquê? 

- porque hoje é a consoada e ela não pára de um lado para o outro! Até parece que já não sabes como é a tua avó nestas alturas… - Javi pisca-lhe o olho.

- paciência avô….paciência! – os dois caminharam, abraçados um ao outro, pelos corredores da casa. Pararam junto à cozinha. Isabel pôde comprovar com os seus olhos o quanto a sua avó andava de um lado para o outro, atarefada e concentrada, a fazer as especiarias de Natal. Assim que Maria deu pela presença deles, focou de imediato o seu olhar em Isabel. A sua avó estava igual…parecia que por ela, o tempo não passava. Maria apressou-se a limpar as mãos e a correr para junto dela. Acabou por a envolver num abraço bem forte. Mais um abraço para que Isabel quebrasse, mais um sentir forte para perceber as saudades que sentia daquilo tudo. Que mesmo tendo a sua vida numa tamanha confusão, ela sentia imensas saudades deles. 

- minha enana! – a voz de Maria era afectuosa, quente, melódica, tão confortante… - ainda bem que estás cá!

- eu…eu quero pedir-vos desculpas pelas minhas atitudes. Eu sei que exagerei e não deveria ter feito as coisas dessa forma… lo siento.

- hei…já passou, vale? Já passou e está na altura de virar a pagina pode ser?

- pode! – respondeu com um sorriso no rosto

- queres me ajudar? Preciso de mais umas mãos para acabar os doces todos!

- claro que a ajudo avó! mas…e a Pilar não está?

- foi até à cidade buscar as encomendas que fizemos! Eu bem que pedi ajuda ao teu avô mas só consegui receber prejuízo até agora… - Maria lança um olhar reprovativo a Javi e este olha-a com um falso perplexo.

- prejuízo? 

- sim, prejuízo! olha e as caixas que te pedi para ires buscar, onde estão?

- eu ia a caminho da arrecadação busca-las mas pelo meio encontrei o meu outro doce… - o olhar incide sobre Isabel – mas já vou buscar! Já vou! – tanto Isabel como Maria gargalharam.

- É, se não conhecesse o meu marido…até te comprava! Deixa…eu vou contigo que tu ainda podes tropeçar com essa maldita bangala…

- eu sei bem cuidar de mim! – resmungou

- é melhor você aceitar a ajuda da avó, eu notei que está com dificuldade em andar! – interveio Isabel

- estás a ver? Ouve a tua neta!

- pronto…eu estou tramado com as minhas Marias juntas contra mim! 

- é para o seu bem avô!

- Anda, vamos que eu tenho muito para fazer!

- podemos ao menos, ir de braços dados? Torna o momento mais romântico! – declarou com aquele sorriso que nunca desaparecera e permanecia intacto. Aquele sorriso que fazia Maria apaixonar-se perdidamente por ele.

- Ai Javi… - seguiram os dois pela cozinha fora, deixando Isabel sozinha. Apenas restava ela…a olhar para aqueles ornamentos todos. Lembrar dos tempos de Natal em que era pequena e passava as manhãs a correr até ali, há procura de um doce ou até mesmo a querer ajudar os adultos a preparar os doces.

- avó, você tem… - a chegada de alguém soou que nem alarme na cabeça de Isabel. Olhou na direcção da porta e o seu olhar estagnou na chegada de alguém. Marisol. Surpresa, era tudo o que aquele olhar queria dizer ao reparar na presença de Isabel ali, bem na sua frente. – hum….estás aqui?

- dá para ver que sim – Isabel respondera de uma forma curta e grossa, tentando controlar os seus pensamentos.

- não esperava ver-te por cá – Marisol caminha pela cozinha parando do outro lado do balcão.

- apanhei-te de surpresa, foi? 

- a mim? Oh…claro que não! Apenas habituamo-nos a não ter-te por cá. 

- para grande pena tua, aqui estou! – Isabel força um sorriso amarelo

- e vens para ficar?

- quem sabe… - Isabel fixa o seu olhar no dela e depressa sentiu-se a contrair. Era ali que ela percebia que seria impossível ter o mesmo sangue que ela. Marisol…parecia ser de outro mundo, era egoísta, mesquinha, ciumenta. Como poderia ela ser do mesmo sangue de pessoas tão boas como o resto da família?

- é pena ter que suportar novamente o mesmo ar que tu.

- ainda bem que o sentimento é reciproco.

- afasta-se do Javi! – avisou-a num tom juncoso que nem em pouco intimidou Isabel

- porquê?

- é bem que te afastes dele. O Javi é meu! – Isabel gargalhou

- claro…ele é todo teu! Tirando o pequeno pormenor de vocês não namorarem. Ups…

- ele jamais gostaria de ti!

- olha e ainda bem até porque eu jamais gostaria dele…sabes, ele não combina comigo. Acaba por fazer demasiado o teu estilo.

- então porque foste correr com ele? aquilo foi tudo uma cena para me provocar? – Marisol corroía-se toda. Era bem visível o quanto se estava a controlar. Isabel sabia que conseguiria atingi-la tanto que fora essa a sua intenção. 

- e estou a ver que consegui! Ora confessa… - num tom juncoso e provocador, Isabel mirava-a com um sorriso cínico.

- ora essa! Só me livraste de não ter parado na prisão. Apenas foste tu e ele, presos por participarem em corridas ilegais!

- que história é essa? – alguém aparece ali. Num grande sobressalto, tanto Isabel como Marisol viraram-se na direcção da porta encontrando a avó de ambas, Maria, a olha-las de forma bem conturbada. Um espécie de cliché parecia invadir aquele espaço levando toda a história ao inicio. Depressa Isabel sentiu-se a ser avassalada por uma onde de pânico crescente à medida que fitava o olhar da sua avó e percebia que estava tramada. Agora sim, as coisas voltariam ao mesmo…